quinta-feira, 11 de março de 2010

Voto do min Eros Grau no julgamento que isentou de contribuição previdenciária sobre vale-transporte pago em dinheiro

RE 478.410 / SP
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V O T O

O SENHOR MINISTRO Eros Grau (Relator): Os preceitos
veiculados pelos artigos 5º, II; 7º, XXVI; 195, I, “a”; e 201, § 11,
da Constituição do Brasil foram prequestionados. O artigo 150, I,
embora não indicado expressamente no acórdão, não pode deixar de ser
apreciado.

2. O artigo 5o, II, do texto constitucional, consagra o
princípio da legalidade em termos relativos, ao passo que o art.
150, I, retoma-o, então o adotando em termos absolutos. É este
último o sentido da legalidade que se questiona no presente
extraordinário. Os preceitos respeitam ao mesmo princípio, de modo
que não podem ser analisados senão em conjunto.
3. O recorrente, ademais, opôs embargos declaratórios, a fim
de que o Tribunal a quo se pronunciasse a respeito. Fez, portanto,
tudo o que estava ao seu alcance a fim de que a ofensa ao princípio
da legalidade fosse apreciada. Trata-se de caso análogo ao do RE n.
351.750, Relator o Ministro Marco Aurélio. Naquele julgamento
levantou-se questão preliminar sobre o conhecimento do recurso, uma
vez que o Tribunal a quo permaneceu silente quanto à matéria
constitucional debatida, mesmo com a oposição de embargos de
declaração.
4. O Ministro Sepúlveda Pertence, instaurando a divergência
que se sagrou vencedora, conheceu do recurso, eis que o então
recorrente fizera “tudo que lhe era exigível” para que a questão
fosse examinada pelo Tribunal a quo. Seria um contra-senso à
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economia processual determinar a baixa dos autos a fim de que o
Tribunal se manifestasse a respeito e posteriormente, em nova
remessa a esta Corte, a questão fosse finalmente apreciada.
5. Conheço do recurso, pois, quanto ao artigo 150, I, da
Constituição do Brasil.
6. Não há falar-se, também, em ofensa indireta ao texto
constitucional. Isso porque o Supremo Tribunal Federal tem se
manifestado a propósito da tendência da não-estrita subjetivação ou
maior objetivação do recurso extraordinário, que deixa de ter
caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesse das partes,
para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem
constitucional objetiva [RE n. 388.830, DJ de 10.3.06, Relator o
Ministro Gilmar Mendes].
7. Em texto de doutrina, Gilmar Mendes acrescenta a esses
argumentos o de que “trata-se de orientação que os modernos sistemas
de Corte Constitucional vêm conferindo ao recurso de amparo e ao
recurso constitucional. Nesse sentido, destaca-se a observação de
Häberle segundo a qual ‘a função da Constituição na proteção dos
direitos individuais (subjetivos) é apenas uma faceta do recurso de
amparo’, dotado de uma ‘dupla função’, subjetiva e objetiva,
‘consistindo esta última em assegurar o Direito Constitucional
objetivo’”1.
8. A questão constitucional de que aqui se cuida ultrapassa
os interesses subjetivos da causa.
1 Curso de Direito Constitucional, Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires
Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. – São Paulo; Saraiva, 2007, pág. 914.
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9. Debate-se nestes autos a incidência de contribuição
previdenciária sobre o vale-transporte pago em espécie, por força de
acordo trabalhista, ao trabalhador.
10. Vale-transporte é benefício "que o empregador, pessoa
física ou jurídica, antecipará ao empregado para utilização efetiva
em despesas de deslocamento residência-trabalho e vice-versa,
através do sistema de transporte coletivo público, urbano ou
intermunicipal e/ou interestadual com características semelhantes
aos urbanos, geridos diretamente ou mediante concessão ou permissão
de linhas regulares e com tarifas fixadas pela autoridade
competente, excluídos os serviços seletivos e os especiais" (art. 1º
da Lei n. 7.418/85, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.
7.619/87).
11. Trata-se de benefício, em favor do empregado, que implica
o dever, do empregador, de adquirir a quantidade de vales-transporte
necessários aos seus deslocamentos [= deslocamentos do trabalhador],
no percurso residência-trabalho e vice-versa, no serviço de
transporte que melhor se adequar (art. 4º da Lei n. 7.418/85).
Outrossim, implica o dever, da empresa operadora do sistema de
transporte coletivo público, de emitir e comercializar o valetransporte,
ao preço da tarifa vigente, colocando-o à disposição dos
empregadores em geral e assumindo os custos dessa obrigação, sem
repassá-los para a tarifa dos serviços (art. 5º da Lei n. 7.418/85).
12. Mais, é benefício que, nos termos do que dispõe o artigo
2º da Lei n. 7.418/85 --- renumerado pela Lei n. 7.619/87 --- "a)
não tem natureza salarial, nem se incorpora à remuneração para
quaisquer efeitos; b) não constitui base de incidência de
contribuição previdenciária ou de Fundo de Grantia por Tempo de
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Serviço; c) não se configura como rendimento tributável do
trabalhador".
13. A contribuição previdenciária não incide sobre o montante
a que corresponde o benefício se esse montante vier a ser, em cada
caso, concedido ao trabalhador mediante a entrega, a ele, pelo
empregador, de vales-transporte. Quanto a isso não há dúvida alguma.
Cumpre ver, destarte, se a substituição desse montante em valestransporte
por montante de dinheiro teria o condão de conferir ao
benefício caráter salarial, em razão do que esse mesmo montante
passaria a constituir base de incidência de contribuição
previdenciária.
14. Ao deslinde da questão importa necessária consideração do
conceito de moeda, conceito jurídico. Que aqui se trata de um
conceito jurídico --- não de conceito específico da Ciência
Econômica --- isso percebemos ao cogitar das funções básicas que a
moeda desempenha na intermediação de trocas e como instrumento de
reserva de valor e padrão de valor. O chamado poder liberatório da
moeda permite ao seu detentor, sem limites ou condições, a
exoneração de débitos de natureza pecuniária.
15. A suspensão da conversibilidade da moeda jamais impediu
fossem, aquelas funções, correntemente instrumentadas. Circulação e
aceitação da moeda não encontram fundamento no lastro metálico que
suportaria a sua conversão ou no material de cunhagem de peças
monetárias. A desmaterialização que caracteriza a evolução das suas
formas de moeda decorre da circunstância de a circulação monetária
estar ancorada na definição, pelo direito posto pelo Estado, de
determinado instrumento ou padrão como moeda. Os enunciados legais,
contratuais, obrigacionais, as condenações cíveis, trabalhistas,
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penais --- de cunho pecuniário --- a generalidade das manifestações
jurídicas que encerram aferição patrimonial somente se podem
efetivar mediante alusão ao padrão definido como moeda pelo direito
positivo. Eis aí, então, a moeda como padrão de valor, padrão de que
apenas se pode e deve utilizar nos limites e sob estritas condições
definidas pelo direito positivo.
16. O parâmetro quantitativo da ordem jurídica atinente a
todos os negócios jurídicos de índole patrimonial, todas as relações
processuais [ainda que de valor inestimável para efeito das custas
do processo], a todas as imposições de ordem tributária, a todas as
autorizações de despesa para a execução dos orçamentos públicos,
esse parâmetro, dizia, é enunciado em unidade cuja validade há de
ser inquestionável. Essa unidade, monetária, extrai sua validade do
fato de ser definida no bojo do direito positivo.
17. Moeda é, pois, conceito jurídico. Única e exclusivamente
na medida em que isso seja perfeitamente compreendido poder-se-á
levar a bom termo o desafio que a compreensão de sua disciplina
encerra. E assim é ainda que o traço quantitativo que lhe é próprio
na maioria das vezes conduza o estudioso ao equívoco de ignorá-la
como objeto de indagação jurídica. Os estudos da economia fornecem,
sim, importante contribuição à compreensão da moeda na exposição dos
fluxos monetários, dos mecanismos de crédito, do produto da
atividade econômica. Ainda que seja assim, no entanto, no campo da
economia cogita-se exclusivamente do atributo quantitativo da moeda,
o que não basta, é insuficiente. Pois o que importa é estarmos
cientes de que a moeda exprime, para e no que se presta, quantidades
dotadas de validade jurídica. Deixe-se, portanto, este aspecto bem
vincado: a moeda constitui, a um só tempo, parâmetro e objeto da
ordem jurídica.
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18. Em outras ocasiões2, cogitando dos conceitos jurídicos,
observei terem eles por finalidade ensejar a aplicação de normas
jurídicas. Expressados, são signos de signos [significações] cuja
finalidade é a de possibilitar essa aplicação. Prestam-se a permitir
[= assegurar] a obtenção de certeza e segurança jurídicas. Por isso
existem -- isto é, devem existir -- "para nós" e não apenas "para
mim". Os conceitos jurídicos são usados não para definir essências,
mas sim --- repito --- para permitir e viabilizar a aplicação de
normas jurídicas. Esses, o seu destino e a sua vocação: constituem
um ponto terminal de regras, um termo relacionador de princípios e
regras. Não sendo signos de coisas [coisas, estados ou situações],
os conceitos jurídicos atuam como referenciais que, em si, não estão
ligados a nenhuma coisa [coisas, estados ou situações], embora aptos
a ligar-se a qualquer coisa [coisa, estado ou situação], dentro de
um elenco finito.
19. Resulta destarte fluente o entendimento da afirmação de
KARL OLIVECRONA3, alusiva à unidade monetária: "The search for the
entities called monetary units has been in vain and must be so. No
such units are in existence. The word for the monetary unit has no
semantic reference at all". A palavra "moeda" efetivamente não tem
referência semântica. Assim, o que possibilitou ao homem prescindir
dos metais preciosos como instrumento de troca foi a
institucionalização normativa da unidade monetária, do que decorre a
circunstância de "moeda" ser vocábulo que apenas assume sentido
quando utilizada sob certas normas jurídicas, no quadro de um
determinado sistema de direito positivo. Inexistisse essa referência
[referência a normas jurídicas] e promessas de pagamento e
2 - Direito, conceitos e normas jurídicas, Editora Revista dos Tribunais, São
Paulo, 1988, págs. 66 e ss., e Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação
do direito, 5ª edição, Malheiros Editores, São Paulo, 2009, págs. 228 e ss.
3 - Law as fact, second edition, Stevens & Sons, London, 1.971, pág. 301.
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pagamentos seriam sons e gestos despidos de sentido --- "meaningless
sounds and gestures", diz OLIVECRONA4. Os bons economistas o sabem e
as doutrinas econômicas tomam a moeda como convenção. O fenômeno da
"dissolução da moeda", na hiperinflação, não é senão expressivo do
rompimento dessa convenção, rompimento que se dá quando perece a
funcionalidade do ordenamento jurídico monetário.
20. Por isso os vocábulos "lira", "dólar", "marco", "real" só
ganham significado quando referidos a normas integradas em
determinado ordenamento jurídico, que os contemple como indicativos
da unidade monetária juridicamente válida no espaço por ele
abrangido.
21. A moeda, pois, não é senão um nome sacralizado pela ordem
jurídica. Em 30 de junho de 1994 ano o "real" passou a ser moeda [=
unidade monetária] brasileira única e exclusivamente porque assim o
disse, definindo-o como tal, o direito positivo brasileiro, inovado
pela Medida Provisória 542/94. Todos as demais unidades monetárias
como tais definidas pelos ordenamentos jurídicos de outros Estados
não revestem, no quadro do direito positivo brasileiro, a qualidade
de moeda. Não encerram os atributos monetários de validade e
eficácia indispensáveis ao cumprimento de sua função de padrão de
valor e de liberação de débitos pecuniários. Podem, é certo,
consubstanciar reserva de valor, objeto de avaliação patrimonial,
coisa no sentido jurídico [= elemento que se inclui no patrimônio de
sujeito de direito], constituindo instrumento de pagamento nos
4 - Ob. cit., pág. 303.
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mercados externos. Seu comércio é, contudo, submetido a regras
próprias e específicas5.
22. Isso posto --- moeda é conceito jurídico --- importa
distinguirmos, no vocábulo "moeda", outros sentidos além daquele que
assume enquanto termo do conceito de moeda. É que o vocábulo é
ambíguo, conotando também as peças metálicas, a forma e as dimensões
usuais dessas mesmas peças e, ainda, unidades de conta inúmeras
vezes utilizadas na composição de diferentes negócios jurídicos. Daí
dizer-se que a ação de companhia é a "moeda do acionista"; que
determinado número índice é a "moeda de conta"; ou que a aceitação
de bens de certa categoria para pagamento de determinada obrigação
lhes atribui a qualidade de "moeda". Nessas diferentes situações, a
linguagem comum vale-se das figuras usuais e corriqueiras da
metáfora e da metonímia visando a expressar sentidos mais simples
para a comunicação social. Em nenhuma dessas hipóteses, contudo,
cuida-se, juridicamente, de moeda. Haverá, em cada caso, indexação,
permuta, cessão de crédito, direitos patrimoniais sobre determinado
acervo. Mas não haverá moeda.
23. A moeda está inserida, enquanto conceito jurídico, na
estrutura dos diferentes negócios e diversamente os qualifica,
segundo a função que em cada qual exerce. Conserva sempre em si, no
entanto, a virtualidade de suas funções. Ou o instrumento monetário
desempenha suas funções isoladamente, de forma plena; ou cumpre suas
funções paralelamente à consideração quantitativa de diverso
elemento, tomado como referência de valor. Neste segundo caso,
ainda, dirá respeito aos mecanismos de indexação ou a situações nas
5 Daí o decreto-lei n. 857, de 11 de setembro de 1969, que tutela o curso legal da
moeda nacional, e a disciplina cambial (Lei n. 1.807, de 7 de janeiro de 1953, e
sua regulamentação --- decreto n. 42.820, de 16 de dezembro de 1957) --- e o
artigo 23 da Lei n. 4.131, de 3 de setembro de 1962).
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quais as estipulações quantitativas tomam por base outra moeda ---
padrão de valor válido perante o ordenamento jurídico nacional6.
24. Instrumentar pagamentos e constituir padrão de valor são
funções que a moeda desempenha mercê de sua validade e de sua
eficácia jurídicas. No plano do padrão de valor prevalece o atributo
da validade do enunciado; enquanto instrumento de pagamento, a ele é
agregado o da eficácia. São válidas as estipulações enunciadas no
padrão monetário definido pelo direito positivo e aplicável ao
negócio em questão; é eficaz o pagamento realizado através do
instrumento válido para tanto. Insisto em que moeda é conceito
jurídico: é no plano da linguagem jurídica que se resolve qual é
esse padrão de valor e qual é o instrumento monetário que se pode
usar com eficácia. A funcionalidade do conceito de moeda revela-se
em sua utilização no plano das relações jurídicas. O instrumento
monetário válido é padrão de valor e, enquanto instrumento de
pagamento, dotado de poder liberatório: sua entrega ao credor libera
o devedor. Poder liberatório é qualidade, da moeda enquanto
instrumento de pagamento, que se manifesta exclusivamente naquele
plano jurídico: somente ela permite essa liberação indiscriminada, a
todo sujeito de direito, no que tange a débitos de caráter
patrimonial.
25. Trata-se, aí, de poder --- idéia que compõe o núcleo da
ordem jurídica --- que dela nasce e decorre: o direito positivo é o
seu fundamento na medida em que pretende conformar a ordem e
instituir os mecanismos de ação do poder, conformando sua
operacionalidade. Nesse sentido, reduz complexidades, especialmente
as que se manifestam nos mercados, no âmbito dos quais determinadas
6 - Exemplifique-se com a moeda estrangeira, nas hipóteses contempladas no artigo
2o do decreto-lei n. 857, de 11.09.69, e com a Unidade Real de Valor, criada pela
Lei n. 8.880/94, de 27 de maio de 1.994.
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questões --- quem pode comprar? com o que se pode pagar? o que deve
ser pago? --- são solucionadas em razão da definição, pela ordem
jurídica, da moeda. A impessoalidade das relações de mercado repousa
na definição do instrumento monetário pelo direito posto pelo
Estado, o que --- repito --- elimina complexidades, como anota
Tércio Sampaio Ferraz Jr.7, ou as reduz enormemente, na superação de
atributos pessoais dos parceiros, de peculiaridades inerentes às
diferentes situações jurídicas em que se encontrem. Os termos das
relações são reduzidos ao instrumento monetário, que as valida e
confere eficácia aos negócios.
26. A exposição até este ponto desdobrada permite a
enunciação das seguintes observações conclusivas:
[i] a moeda assegura a liberdade e independência do seu
titular;
[ii] parte do poder do Estado integra-se a cada unidade
monetária; essa parcela de poder é exercitada pelos
sujeitos de direito na prática de atos de consumo,
poupança ou investimento --- ou, simplesmente, no
exercício dos diferentes direitos subjetivos que pode
deter o titular de moeda;
[iii] a moeda estabelece uma relação de igualdade entre
os sujeitos de direito [entenda-se igualdade formal], na
medida em que opera redução de complexidades8.
7 - TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR., A Bolsa de Valores como sistema de poder, em
coautoria com Raimundo Magliano Filho, in Revista de Direito Econômico, n. 14, ano
6, Brasília, 1.980, pág. 9.
8 - Neste último sentido, a afirmação de von IHERING (Der Zweck im Recht, Erster
Band, Zweite Umgearbeite Auflage, Druck und Verlag von Breitkopf & Härte, Leipzig,
1.884, págs. 229/230): "A indiferença do comércio jurídico pelo que toca à
personalidade equivale à igualdade absoluta de todos no comércio jurídico. Em
parte alguma o princípio da igualdade se acha mais completamente realizado na
prática. O dinheiro é o verdadeiro apóstolo da igualdade. Os preconceitos sociais,
todas as antíteses sociais, políticas, religiosas, nacionais, são impotentes
contra ele".
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27. A aptidão da moeda para o cumprimento dessas funções
decorre da circunstância de ser ela tocada pelos atributos do curso
legal e do curso forçado.
28. O primeiro --- o curso legal --- expressa a qualidade de
valor líquido da moeda, em razão do que ela não pode ser recusada. O
curso legal assegura a ampla circulação e imposição de aceitação da
moeda; daí a sua caracterização como meio de pagamento.
29. Já o curso forçado é qualidade da moeda inconversível,
vale dizer, de instrumento monetário que não pode ser convertido em
algum bem que represente o valor nela declarado.
30. A exclusividade de circulação da moeda está relacionada
ao curso legal, que respeita ao instrumento monetário enquanto em
circulação; não decorre do curso forçado, dado que este atinge o
instrumento monetário enquanto valor e a sua instituição [do curso
forçado] importa apenas em que não possa ser exigida do poder
emissor sua conversão em outro valor.
31. O curso legal é determinante e condicionante das duas
funções básicas da moeda: a de instrumento de pagamento e a de
padrão de valor. A suposição de que o curso legal respeite apenas ao
dinheiro fisicamente considerado, sem afetar a função, da moeda, de
padrão de valor, não é correta. A validade do negócio jurídico
depende da adoção da moeda que definirá o montante a pagar. Tanto é
assim que se tomarmos, por exemplo, o decreto-lei n. 857, de 11 de
setembro de 1.969, que disciplina o curso legal da moeda nacional,
verificaremos que seu artigo 2º dispõe sobre as hipóteses em que,
excepcionalmente, se admite a cláusula de pagamento em moeda
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estrangeira. Esse artigo 2º não derrogou a exclusividade de
circulação da moeda brasileira e seu caráter de instrumentação de
pagamentos no país. O que define o preceito veiculado por este
artigo é unicamente a possibilidade de, nos casos que discrimina,
ser adotada cláusula de apuração do quantum a pagar segundo a
paridade da moeda brasileira com moeda estrangeira. O curso legal
tutelado pelo artigo 1º desse decreto-lei abrange tão somente a
função de padrão de valor da moeda. O curso legal é atributo do
instrumento que circula com exclusividade, dotado de determinado
valor-padrão [aí o padrão de valor]. Em outros termos: o instrumento
dotado de exclusividade de circulação é a moeda tal, expressiva de
certo e determinado valor [padrão] e não de qualquer valor. Não
fosse assim, a moeda não seria uma medida; não fosse assim, a
exclusividade de circulação nada, absolutamente nada, significaria.
32. Pago o benefício de que se cuida neste recurso
extraordinário em vale-transporte ou em moeda, isso não afeta o
caráter não salarial do benefício. Pois é certo que, a admitirmos
não possa esse benefício ser pago em dinheiro sem que seu caráter
seja afetado, estaríamos a relativizar o curso legal da moeda
nacional. Para demonstrá-lo excedi-me na longa dissertação acima
desenvolvida. Ela há de ter sido útil, no entanto, na medida em que
me permite afirmar que qualquer ensaio de relativização do curso
legal da moeda nacional afronta a Constituição enquanto totalidade
normativa. Relativizá-lo, isso equivaleria a tornarmos relativo o
poder do Estado, dado que --- como anotei linhas acima --- parte do
poder do Estado é integrado a cada unidade monetária, de modo tal
que à oposição de qualquer obstáculo ao curso legal da moeda estaria
a corresponder indevido questionamento do poder do Estado.
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33. A cobrança de contribuição previdenciária sobre o valor
pago, em dinheiro, a título de vales-transporte, pelo recorrente aos
seus empregados afronta a Constituição, sim, em sua totalidade
normativa.
34. Por estas razões, o artigo 5º do decreto n. 95.247/87 é
absolutamente incompatível com o sistema tributário da Constituição
de 1988.
Dou provimento ao recurso extraordinário.
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